“O território é o chão e mais a população. Isto é uma identidade. O fato e o sentimento de perceber aquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi”. Nas palavras de Milton Santos, geógrafo brasileiro que abriu caminhos para reflexões sobre o chamado terceiro mundo, para falar em território é preciso, antes, reconhecer que está em jogo não apenas o espaço, mas o espaço utilizado por uma população com seus costumes e modos de vida.

Imagine uma comunidade situada ao lado do rio, circundada por um manguezal vasto que faz as vezes de foz no encontro com o mar. Com árvores frutíferas abundantes que proveem não só alimento, mas um modo de vida e existência das pessoas de pele marcada pelo sol que ali vivem. Das águas, as mãos, braços e pernas de pele negra aprenderam há muito a encontrar os peixes, mariscos, camarões, aratus, caranguejos e tantas outras espécies. Não por acaso, conhecem como a palma de suas mãos, inscrita na história de seus ancestrais, os caminhos nas entranhas da vegetação do mangue.

Em Suape, palavra de origem tupi guarani que significa caminhos sinuosos, a comunidade remanescente de quilombo Ilha de Mercês decifrou, ao longo do tempo, os tempos de colher e pescar, a época das frutas e os meios para tocar a vida a partir do que a terra e as águas lhes possibilitaram.

Até a chegada do Complexo Industrial Portuário de Suape

A chegada do empreendimento alterou a vida de comunidades que há gerações ocupavam áreas que, hoje, sofrem com a retirada forçada de famílias, o crescimento da violência e a degradação da natureza.

O reconhecimento de comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Palmares foi conquistado no fim de 2017, mas as lideranças enfrentam outros desafios para garantir a permanência no local. De acordo com o INCRA, o processo de regularização do território da comunidade quilombola de Ilha das Mercês está ainda na fase inicial da elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Atualmente, estão na fase do levantamento para relatório antropológico, um dos componentes do RTID, que também prevê análises cartográficas e fundiárias da região.

Para além da burocracia, que pode se estender por ano, como um quebra-cabeças em que ainda há peças faltando, a comunidade tem o desafio de reencontrar as suas raízes a partir de documentos, marcos históricos necessários para conseguir a demarcação do território quilombola.

A cor da pele de um marrom escuro, comum a quase todas as pessoas da comunidade Quilombo Ilha de Mercês, não nega a ascendência do povo negro escravizado que foi trazido da África para o cultivo da cana na Mata Sul de Pernambuco. A população que ali reside retoma, aos poucos, a identidade quilombola que sofreu com o apagamento da memória e da história pela ação do racismo.

Segundo lideranças da própria comunidade, antes da chegada do empreendimento cerca de 800 famílias ocupavam o território. Após sucessivas investidas de desapropriação com e sem indenizações consideradas justas, por volta de 166 famílias ainda resistem.

O fato de ser remanescente de quilombo tem alimentado a esperança da comunidade de conseguir preservar o território e o modo de vida do avanço de Suape. O reconhecimento, por si só, não garante as condições de vida que desejam os moradores, mas é um primeiro passo para enfrentar o poderio econômico que já vem devastando o modo de vida dos descendentes de quilombolas.

É esse o trabalho que jovens lideranças têm feito, organizando os trabalhadores na Associação de Moradores de Mercês para garantir o sustento da comunidade, denunciar as violações de direitos humanos e buscar resgatar a história e ensinar aos mais novos sobre a importância do Quilombo Ilha de Mercês.

Antes pescadores, hoje boa parte das pessoas vive da coleta e comercialização de frutas que crescem pelo território. Mangueiras, mangabeiras e jaqueiras fazem parte da paisagem a que estão habituados. Mas até elas têm sofrido com as mudanças na região depois da instalação do complexo industrial e portuário.

Seu relato dá conta de um dos maiores problemas que a comunidade vive: o fechamento do mangue para a construção do Estaleiro Atlântico Sul. Localizado na Ilha de Tatuoca, que teve toda a população retirada por Suape, a estrada construída para dar acesso ao estaleiro fechou a comunicação do estuário de mangue com o mar. Apenas três canaletas permitem que a água passe, quando a maré está cheia.

Para os moradores de Mercês, essa estrada é a sentença de morte do mangue que, sem renovação da água, tende a apodrecer. “Boa parte dos moradores vive da pesca. Quer dizer, sobreviviam. Hoje praticamente tem que correr para outros territórios para sobreviver. Hoje a gente está isolado aqui com essa água represada”, conta Jessé, pescador de Mercês. Organizados, conseguiram comprar um motor e é com ele que vão de barco a outros locais onde há peixe.

Pescadores e também coletores, os moradores se organizam em cooperativa informal e é assim que têm tirado o sustento das famílias.

Árvores frutíferas mortas de dentro para fora, com troncos que permanecem em pé, mas sem vida, são a imagem do que os moradores chamam de “mal de Suape”. O fenômeno que atinge várias comunidade em Suape parece ter uma preferência por espécies que dão alimento e sustento às pessoas.

Moacir José, pescador, nascido no campo do Poeirinha, há seis anos divide a vida entre Mercês e Ponte dos Carvalhos, bairro do Cabo de Santo Agostinho para onde muitas pessoas que moravam no quilombo migraram em busca de trabalho e segurança.

Durante a semana, ele passa os dias e noites no mangue e na mata, colhendo frutas com outros homens e mulheres da cooperativa. “Toda a vida foi essa. Já nasci pegando caranguejo. Mas hoje está muito mais difícil. Quando o rio era aberto, a gente pegava de 30 a 50 quilos de camarão, hoje nem se vê mais”, conta.

Com 43 anos, o pescador diz que é a lama do mangue que “preserva a pele”. Aprendeu, sem precisar que ninguém ensinasse, onde encontrar os frutos do mar no meio do mangue. Moacir, que se orgulha e sente falta da vida no mangue, lamenta o destino dos filhos, que iniciaram os estudos, mas depois não puderam continuar.

A promessa de desenvolvimento findou quando perceberam que, depois da construção das empresas, não havia mais vaga para trabalhar. “Faziam quarta série no engenho, mas não tinham dinheiro de passagem para ir estudar. Hoje em dia meus filhos foram trabalhar na usina, na cana de açúcar”, comenta.

Apagamento e resgate da identidade quilombola

A palavra escrita é um dos elementos que faltam na tentativa de resgatar a história de Mercês. Foram poucos os documentos reunidos por moradores e lideranças para conseguir o reconhecimento da identidade quilombola e que contam um pedaço da história e dão uma ideia da realidade desigual e de exploração que acompanha a comunidade.

A oralidade é onde reside boa parte das estórias e do imaginário do território. A partir da lembrança, as lideranças jovens começaram a buscar as provas de que no passado dos mais velhos havia mais do que histórias para embalar as crianças e ensinar os modos de sobreviver da terra e das águas do mangue.

Dona Madal, como é conhecida Madalena Martins, matriarca da família Martins, é uma das personagens centrais desse resgate. Parte da família se mudou em busca de melhores condições de vida, mas os que permanecem em Mercês estão concentrados no “Campo do Poeirinha”, outrora conhecido como “Sangue”. O nome faz referência ao sangue da mesma família negra, com avós, mães, pais, filhos e os filhos dos filhos e suas famílias ao redor.

A história costurada pelo racismo

Em Mercês, segundo afirmam a relatora da Plataforma Dhesca, Cristiane Faustino, o racismo ambiental – aquele em que os impactos ambientais de grandes empreendimentos atingem populações tradicionais e negras – está evidente no modo como a administração de Suape lida com a comunidade. Não se trata apenas da retirada forçada das pessoas, o modo como as famílias, suas histórias e o modo de vida são afetados por essa ação contribuem para reforçar a tese.

O racismo se reinventa e prolonga justo na região em que o regime escravocrata predominou e construiu o poder econômico e político que até hoje permanece nas mãos das famílias dos antigos senhores de engenho. Na balança da desigualdade, as famílias antes donas de terras e de escravos são as mesmas proprietárias e donas de grandes empresas.

Do outro lado, os descendentes de pessoas escravizadas são os que hoje lutam para permanecerem onde seu modo de vida foi construído e por direitos que assegurem condições básicas de saúde, educação, habitação e trabalho.

Diversas faces do racismo

 

Auxiliadora Martins, professora adjunta do Centro de Educação da UFPE e fundadora do Grupo de Estudos em Autobiografias, Racismo e Antirracismo na Educação, explica que o conceito de racismo institucional nem sempre é de fácil percepção pela sociedade.

Segundo ela, a negação de direitos fundamentais por políticas públicas caracteriza o racismo institucional dos poderes instituídos. “Educação, saúde, saneamento, habitação são direitos humanos que devem ser garantidos a todos. Se as políticas públicas federais, estaduais e municipais de alguma forma dificultam esse acesso estão praticando racismo institucional porque são essas as instituições que deveriam garantir direitos à população negra”, argumenta.

Quando contam sobre o impacto de Suape nas suas vidas, os moradores que permanecem em Mercês sempre fazem referência a locais e práticas que representam o modo de vida quilombola, pescador e agricultor. Não à toa, uma das maiores perdas foi a morte da benzedeira e parteira, uma referência para a comunidade. “Passaram por cima da casa da parteira, passaram por cima do mangue. Ela morava em frente de onde agora é a refinaria”, lembra um morador.

Passaram por cima do mangue

A morte iminente do rio e do mangue é citada por todos. As árvores que, nas palavras dos moradores, adoecem e morrem pelo “mal de Suape” também carregam de tristeza as falas dos quilombolas. “Eles chamam isso de desenvolvimento, eu chamo de crime ambiental”, afirma Jessé Martins, liderança local. Para ele, não faltam evidências para comprovar a contaminação do rio por líquidos de odor forte e aparência oleosa despejados de fábricas próximas a Mercês. “Basta fazer uma análise da água. Não precisa acrescentar nada para incriminar esse governo, basta ver isso aqui”, critica.

“A gente dançava coco, brincava de roda, fazia beiju. Hoje não faz porque Suape destruiu a casa de farinha. Foi tirando a turma e ninguém plantou mais. Hoje em dia para comer uma tapioca tem que comprar goma”, lamenta Moacir José, também filho de Dona Madal.

Ivaldo, antigo morador de Cocaia, ilha localizada ao lado de Mercês, lembra da primeira vez que ouviu falar de Suape: “Desde a década de 70 começaram a invadir. Primeiro começaram a destruir os coqueiros e as casas. Na época eu tinha 39 anos quando teve a primeira reunião e eles disseram que a gente era invasor”.

Retomada e luta pelo modo de vida quilombola

Pescadora que organiza a vida em função da maré, do tempo dos peixes, siris, camarões, aratus e outros, Marinalva Maria da Silva não tem hora certa para estar em casa. Ela é admirada na comunidade, todos falam em seu nome como alguém que precisa ser ouvida, escutada pela reportagem. Quase todos os dias da semana sai cedo para a pesca e retorna apenas quando há o suficiente para garantir a refeição ou a fonte de renda esperada para o dia.

Uma liderança ainda tímida, comprometida com a melhoria de vida dos moradores mais próximos, Marinalva só altera o tom de voz calmo quando fala das injustiças e violências que presenciou por causa de Suape.

Criada pela avó, a quem chama de mãe, é uma das filhas de Dona Madal, e vive há alguns metros da mãe de sangue e irmãos no Campo do Poeirinha. Com a avó, além da pesca, aprendeu os usos e modos de cultivo de ervas e plantas que nascem no meio da vegetação. É ela quem faz as vezes de curandeira, uma vez que a última benzedeira faleceu “de tristeza” após a chegada de Suape e não passou a tarefa a outra pessoa de Mercês.

Da administração de Suape quer distância e a garantia de que poderá criar os filhos e viver da pesca e da agricultura sem interferência da empresa.

DO LADO DA CERCA VIVE GENTE Termelétrica Suape II

O desespero nos olhos de quem não enxerga qualquer possibilidade de paz acompanhava Maria Joana do Nascimento em meados de abril de 2018, na primeira vez que nos encontramos. Repetia por diversas vezes que não sabia quanto tempo mais aguentaria viver naquela situação. Falava da porta da sua casa, apenas alguns metros distante da cerca de arame farpado que circunda a Termelétrica Suape II, sua vizinha.

Uma termelétrica como a Suape II, com capacidade de geração de energia de 350 MW pode permanecer horas com geradores ligados sem parar. Dia e noite, as mais de 20 pessoas da pequena comunidade, com crianças de dois meses a 11 anos de idade, convivem com o barulho constante produzido na queima de óleo combustível. Paredes tremendo, rachaduras e mau cheiro de produtos químicos se tornaram parte do dia a dia da família.

O processo de geração termoelétrica a óleo combustível consiste tradicionalmente na utilização de máquinas térmicas que convertem parte da energia contida no óleo combustível em energia elétrica. No seu site, a própria UTE Suape II reivindica o título de maior termelétrica movida a óleo do país. Um dos produtos “colaterais” é a liberação de gases que aumentam o efeito estufa.

A termoelétrica pode passar dias ligada. Quando isso acontece, os moradores temem permanecer dentro de casa com medo de que a estrutura desabe. Uma parede da casa de Joana não resistiu à trepidação recorrente e caiu. À noite, o barulho não permite que as pessoas durmam. As dores de cabeça se tornaram o menor dos problemas dos adultos e crianças.

A condição de vida ali é insustentável. Por esse motivo, a família briga hoje por uma indenização justa pela propriedade de 10 hectares e as casas construídas. Segundo Joana, Suape chegou a oferecer 60 mil reais na primeira abordagem à família. “Com esse dinheiro eu não consigo comprar um terreno em lugar nenhum. Isso é um desrespeito com a gente”, critica.

Várias espécies de árvores adoeceram e morreram. Mais um prejuízo para a família, que garantia boa parte da alimentação e do sustento com o que cultivava e vendia. Muitas árvores que restam estão podres por dentro, outras têm manchas laranjas nos troncos. O mesmo tom forte criou uma “camada” na pista ao redor da termoelétrica. Segundo os moradores, depois que a termoelétrica liga, um pó cai dos céus sobre as plantas e casas.

“As plantas ficam doentes desde que nascem devido às coisas que caem nelas. Cai tudinho e fica ruim”, conta Joana. A família agora tem medo de comer qualquer alimento que venha da própria terra.

Além da terra, a construção da termoelétrica tirou a fonte de água da família. Primeiro, o curso do riacho que passava no terreno foi interrompido e alagou parte da propriedade. A água parada agora atrai mosquitos e coloca em risco as crianças. Sem opção, a família utiliza água de uma cacimba que foi contaminada. “A cacimba onde a gente pega água está contaminada, mas a gente está tomando. A gente tinha água encanada, mas a obra tirou isso. Não tem como comprar água estando desempregada. Eu vivia disso aqui, eu ganhava dinheiro”, relata a moradora.

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Injustiçados na própria terra

A família de agricultores familiares vive naquele mesmo local há 53 anos. Amara Joana do Nascimento e Cláudio Manoel do Nascimento, mãe e pai de Joana, construíram a casa onde vivem após se casarem. Ao redor, conforme os filhos e netos cresciam, outras cinco pequenas casas foram erguidas pela família.

Cuidadoso, Cláudio guarda os documentos de quando prestava serviço em usinas nas épocas de corte da cana de açúcar, certidões de nascimento e de posse da terra que comprovam que sua família estava ali há anos.

Todos os filhos nasceram em casa, conta Dona Amara. “Não tinha tempo de parar. Nunca tive tempo de me deitar parida. Nunca tive esse privilégio. Era andando, fazendo farinha. O meu privilégio foi esse, minha filha, pegar mandioca naquela ladeira”, lembra a matriarca, com um riso que não esconde a tristeza na voz.

A surpresa ao ouvir de Saupe que eram “invasores” durou pouco e deu lugar à indignação. O pai, apegado “ao que é certo”, é o único que ainda acredita na resolução da questão com justiça. Dona Amara não consegue mais olhar para o campo de onde tirou o alimento para criar a família sem entrar em desespero.

Joana perdeu as esperanças na negociação e passou a enfrentar Suape com todas as forças. Ela se tornou conhecida por promotores e juízes por não dar trégua à administração de Suape com denúncias sobre as condições de vida de sua família e o acompanhamento intensivo dos processos que correm na Justiça.

Depois de quase chegar a colapso nervoso, meses depois do primeiro encontro, Joana comemorou a aposentadoria como trabalhadora rural. Um pequeno passo que renovou a energia para continuar a guerra com a administração de Suape, que já a considera uma pedra no sapato.

O cenário de terra arrasada motivou o Fórum Suape, organização não governamental que defende populações atingidas pelo complexo industrial, a dar entrada em uma representação no Ministério Público Federal para interdição da Usina Termelétrica Suape II (Suape Energia).

“A convivência durante todos esses anos com tais fatores nocivos à saúde vem agravando cada vez mais o estado clínico da família e gerando problemas psicológicos. A família aguarda a indenização pelo sítio para poder deixar o local e reconstruir a vida em outro lugar. Contudo, enquanto a empresa pública Suape não efetuar tal indenização, serão obrigados a continuar no local, sujeitando-se a uma realidade insustentável, que é agravada pela fome”, argumenta o Fórum no documento encaminhado ao MPF. “Alguma coisa precisa ser feita com urgência para garantir a vida dos moradores”, explica Mariana Vidal, advogada do Fórum.

No Relatório Ambiental Simplificado, documento técnico que fundamenta o empreendimento Termoelétrica Suape II, há recomendações e indicações de que havia famílias morando na área de 50 hectares em que a fábrica Estadual instalada. Apesar disso, a administração de Suape chegou a afirmar à Joana que não tinham informações de que vivia gente ali. A contradição é só mais um elemento das injustiças e violações praticadas pelo empreendimento. O mais grave, ter casas com crianças e idosos ao lado da cerca, não impediu o início e conclusão das obras da termelétrica.

Adoecimento coletivo

Joana guarda as dezenas de notas fiscais do remédio para insuficiência respiratória que um dos seus netos teve que tomar regularmente, quando tinha apenas oito meses. Além dele, outro neto passou a fazer uso de bombinha para asma. Uma sobrinha adolescente precisa fazer nebulização quase todos os meses. Segundo ela, o irmão foi diagnosticado com um nódulo no pulmão. As dificuldades para respirar, erupções e coceiras na pele são sintomas de doenças novas na história da família – há 53 anos vivendo no mesmo local.

Todas as crianças e adolescentes da família apresentam algum problema respiratório, o que por si só aponta uma anomalia e foge à prevalência de asma verificada em crianças no Brasil. “Uma coisa 100% certa é que existe influência direta da poluição da termelétrica no processo de adoecimento dessa família”, afirma o médico da Rede de Médicos e Médicas Populares, Raonne Freitas.

Em apenas um dia, as sete crianças examinadas pelo médico contaram o histórico de doenças respiratórias, queixas de irritações na pele e atendimentos em emergências. Para o pediatra, que também atende na rede pública do Cabo de Santo Agostinho, para além da óbvia relação dos gases da usina termelétrica e o problema respiratório, outros fatores podem influenciar o adoecimento da família.

As crises atacam principalmente as crianças mais novas e costumam coincidir com períodos em que a termelétrica está ligada. “É normal crianças terem crise de cansaço. Não é normal todas as crianças de uma família terem crise de cansaço. Toda doença tem uma prevalência específica de acometimento na população. Por exemplo, um número x da população tem diabetes, hipertensão. Se por acaso todas as pessoas de uma família têm hipertensão alguma coisa está errada, alguma coisa no contexto daquela família está provocando a doença mais do que na população em geral. É o que acontece aqui”, explica o médico.

Mais de um ano após o primeiro contato da reportagem com a família que vive ao lado da termelétrica pouca coisa mudou. As negociações com a administração de Suape avançaram e, ao menos, a matriarca Amara e seu marido, Claudio Manoel, se mudaram devido à condição de saúde. Vão receber R$ 60 mil pela casa.

Já Joana, filha do casal que iniciou a vida naquele mesmo local há mais de 50 anos, permanece no local. Ela, que briga há anos por uma indenização justa, promete ficar até ter certeza de que vai ter seus direitos garantidos. O valor estimado pela casa e terreno baixo de R$600 mil para 350 mil, mas ainda assim ela aceitou. “Eu aceitei esse valor e também pelo ambiente que a gente vive, não tem mais como. Ninguém sabe se ele vai pagar. Não tem nada certo ainda”, afirma Joana.

Em um acordo, foi decido que as filhas de Joana vão receber uma casa, cada uma, no Habitacional Vila Claudete, no Cabo de Santo Agostinho. As famílias das cinco filhas ainda não se mudaram para o novo local, mas estão animadas com a possibilidade de recomeçar a vida com um teto. “Vou ser feliz lá, mais do que aqui. A gente decidiu fazer a troca. Eu não aguento ficar ali não, eu quero uma casa com terra”, conta Raiane, umas das filhas.

Para Joana, no entanto, depois de anos de luta e tentativas frustradas de garantir justiça, a vida continua difícil e o futuro incerto. Permanece a poluição diária e o adoecimento. “As casas continuam balançando. Ela, minha filha, está certa. Ela tem uma criança e tá sofrendo. É uma situação muito crítica. As meninas vão e eu vou ficar aqui sozinha, meu deus, o que vai ser de mim? Eu tenho medo”, lamenta.

Não há caminho fácil para as mulheres Marisqueiras em Suape

As ex-moradoras da Ilha de Tatuoca sintetizam, no seu pequeno universo, grande parte das violações que as mulheres sofreram com o impacto do complexo portuário industrial. Pescadoras, tiveram suas vidas transformadas, com significativa piora do acesso à saúde, educação e segurança.

“Agora eu sou uma marisqueira de verdade”, diz Maria José da Silva, conhecida por todos como Deca, chefe de família que mora na Vila Nova Tatuoca, conjunto residencial para onde foram deslocados os nativos da Ilha de Tatuoca que, como ela, nasceram entre rio, mar e manguezais e viram a chegada de Suape mudar completamente suas vidas.

Entre resignada e orgulhosa do percurso difícil que enfrenta todos os dias para garantir o sustento da família de seis filhos, a mulher que antes tirava sustento da pesca, da agricultura, da venda de frutas que nascem na ilha que era seu quintal, agora, precisa de uma jangada e da força dos braços para carregar mariscos na deserta Ilha de Tatuoca. “A distância é porque a gente tinha pesca e fruto em casa. A gente acordava com o mar. Agora precisamos andar carregando peso”, diz Deca.

O conjunto de 75 casas foi construído já “no final” da comunidade de Praia de Suape. A paisagem é de um laranja amarelado, a cor da terra da barreira aos fundos do conjunto, onde sombra é raridade. Não há uma árvore sequer. Um balanço magricela construído de improviso pelos moradores em uma das praças completa o cenário árido em que vivem. As telhas de alumínio pioram o sofrimento das famílias que não suportam o calor dentro de casa. A reportagem esteve no local entre 13h e 14h e pôde experimentar um pouco dessa angústia.

A vida no habitacional

A mudança de vida significou mais esforço físico e maior dificuldade de acessar direitos básicos, como saúde e educação, a maior reclamação das marisqueiras. O posto de saúde da Praia de Suape deveria atender os moradores do novo conjunto, mas disponibiliza apenas cinco fichas de atendimento por dia. As mais de 75 famílias precisam recorrer a outros postos, mas alegam dificuldade de obter o encaminhamento.

A escola municipal Rui Barbosa fica a apenas alguns metros do conjunto Vila Nova Tatuoca, mas não foi preparada para receber as crianças que vieram da ilha. Segundo Sara Cristina, assessora do Centro das Mulheres do Cabo, as 14 salas estão superlotadas.

Na Ilha de Tatuoca, a antiga escola foi reduzida a escombros e entulhos que hoje são tomados pela vegetação. Pedaços de bancos escolares e utensílios pelo chão representam o modo como as pessoas que ali viviam foram tratadas por Suape. “Primeiro eles chegaram dizendo que iriam precisar de uma parte da ilha, depois outra. No começo não disseram que o plano era tirar todo mundo daqui”, conta Edjane Maria da Silva, conhecida como Jane, mãe de três filhos, tem 27 anos e boa parte deles vividos na Ilha de Tatuoca.

Quando conheceram a violência

O sentimento de insegurança, difícil de explicar para algumas, veio com a mudança de vida para uma área urbanizada. A nova preocupação para as famílias, no entanto, já havia batido à porta ainda na Ilha de Tatuoca. “Em Tatuoca a gente dormia com as portas à vontade. Depois que o estaleiro começou foi que começou a ter carro, essas coisas”, conta Jane.

No dia a dia na Vila Nova Tatuoca as mães agora têm o desafio de conviver com diversos medos. Não confiam em deixar as crianças sozinhas mesmo na rua do conjunto. Os motivos vão desde o perigo da rua movimentada, pessoas estranhas, o que ouvem falar sobre drogas e o temor da violência contra meninas e mulheres. “Faz seis anos e eu ainda não me acostumei. Não me sinto em casa. Ainda tenho um aperto no peito. Ali não tinha dinheiro que pagasse. Até para as crianças lá era melhor, não tinha violência, era tudo família”, diz Deca.

Em frente ao habitacional, um depósito informal de lixo se acumula na calçada. O cheiro de esgoto também está presente. Do outro lado da rua, uma área de mata fechada é o caminho pelo qual as mulheres seguem para chegar ao local de pegar jangadas que usam para pescar.

Os medos que acompanham as mulheres desde a chegada de Suape não acabaram com a mudança para o conjunto habitacional. Até hoje as famílias não têm o documento de posse das casas. A ameaça de expulsão aparece sempre como a maior preocupação para as mulheres.

Mariana Olívia, pesquisadora bolsista do Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho da Fiocruz-PE e docente do curso de medicina da UFPE, analisou o que as mulheres que vivem no Cabo de Santo Agostinho e em Ipojuca, dois municípios onde Suape está instalada, perceberam das mudanças a sua volta. Para a pesquisadora, que analisou a recorrência dos discursos de mulheres de várias comunidades no território de Suape, a fala delas revela o quanto suas narrativas têm como base a relação com o território.

“Muita coisa gira em torno do território pois é o território em que elas viviam, produziam, pescavam. Os territórios tinham um modo de vida que era deles. O que percebi foi uma drástica mudança disso. A princípio elas poderiam dizer que mudou para melhor porque elas conseguiram acessar outras coisas, bens de consumo: equipamentos eletrodomésticos, telefone celular. E elas não conseguiam depois de um período manter algumas coisas dessas e perderam a forma anterior de modo de vida, de trabalho, de alimentação”, explica.

Mariana Olívia cita o exemplo da Ilha de Tatuoca. “Quando Suape chega de forma bem brusca, traz a questão da violência, da expulsão da terra, a proibição do direito de ir e vir. Depois de certo tempo acontecem ameaças, vigilância. As pessoas começam a se sentir sem direitos. Como é que a pessoa está ali há várias gerações e de repente não pode mais ficar naquela terra?”, questiona.

Para Cássia Jane, coordenadora de projetos e educadora social do Centro das Mulheres do Cabo, organização feminista que atua no território há mais de 30 anos, após a chegada de Suape a região vem vivendo um aumento da violência que não diminuiu após o boom da construção no complexo industrial, quando a cidade foi tomada por trabalhores que se instalaram no município. Segundo ela, os impactos negativos continuam afetando o modo de vida de diversos grupos, mas as mulheres tiveram as vidas prejudicadas de modo mais grave.

Conflitos não acabam para as mulheres

Para Mariana, a condição de vulnerabilidade das populações que ali viviam e o modo como Suape piorou a realidade das pessoas desenham um cenário que ela chama de “injustiça ambiental”. Mais da metade dos conflitos em relação ao meio ambiente trata da mudança dos usos tradicionais da terra. Eles afetam de maneira mais clara a saúde das pessoas ou provocam danos ao meio ambiente, mas, de acordo com a pesquisadora, também causam sofrimentos sociais e mentais.

O conceito leva em consideração não apenas questões ambientais, mas aspectos sociais e culturais das comunidades tradicionais que tiveram as realidades transformadas. Segundo ela, falar sobre o modo de vida tradicional das populações não significa que as pessoas não tivessem dificuldades, mas é preciso considerar os meios e processos construídos historicamente para intervir e melhorar a qualidade de vida. “Era uma forma de viver mais simples que precisava de políticas públicas que pudessem melhorar a condição de vida deles, mas considerando aquele modo de vida”, explica a pesquisadora.

No entanto, o que aconteceu foi o contrário. “Com o processo da industrialização de Suape, o Estado não fez isso e também promoveu outros processos de injustiça. Acabou com o pouco acesso à água, desterritorializou essa população, obrigou a mudar a forma de trabalhar e viver de maneira tão drástica que, ao invés de promover desenvolvimento, gerou mais situações de desigualdade, mais injustiça. Isso afetou de forma mais forte essas populações que já eram vulneráveis”, resume.

Violações de Suape no mapa mundial

 

O mapa de conflitos faz parte da tese defendida pela pesquisadora Mariana Olívia. Segundo ela, quando conheceu o mapa nacional que só apresentava Suape como um conflito genérico, percebeu a importância de construir um mapa específico sobre os impactos do complexo. Durante a pesquisa, a grande quantidade de relatos de conflitos e a pouca divulgação deles chamou a atenção da pesquisadora. Para ela, a ausência de informações é um dos fatores que dificultam a organização das populações vulneráveis para a garantia de seus direitos. A pesquisa contabilizou os tipos de conflitos, os locais, os responsáveis e os grupos atingidos.

O levantamento compõe o Mapa de Justiça Ambiental, organizado pelo Projeto EJATLAS, do Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Autônoma de Barcelona. O projeto documenta e cataloga conflitos sociais em torno de questões ambientais em todo mundo. Suape e empreendimentos que integram o complexo industrial e portuário aparecem em 3 casos de violações de direitos. A Refinaria Abreu e Lima, a remoção forçada de famílias em função do Estaleiro Atlântico Sul e o Completo Industrial Portuário de Suape é acusado de violência, despejos forçados, contaminação da água e ameaças a habitantes e ativistas locais pelo Fórum Suape e comunidades da região. No total, o mapa registrou 2952 casos no mundo.

“O grande diferencial de Suape é que (o empreendimento) separa as comunidades. O território é tão grande que muitas áreas não se conhecem. Uma questão crucial é a divulgação da informação. Ao mesmo tempo que elas (as comunidades tradicionais) são a população mais vulnerável, à medida que tem um grupo que consegue trazer informação, qualificação de ativismo social e socioambiental e começa a mostrar, empoderar essas comunidades, surge a construção de outros discursos. Porque antes eles só recebiam o outro lado, dos empresários, que era o que os meios de comunicação traziam”, explica a pesquisadora.

Clique na imagem para acessar o Mapa de Conflitos.